Dossiê: Magia e reprodução

Sobre a mãe de todas as bruxas

então, durante a cópula talmúdica, Lilith fez uma reviravolta mirabolante e ergueu-se sobre Adão – nesse movimento, o sol sumiu por um instante e Adão conheceu a sombra. O corpo de Lilith tomou uma dimensão que ele jamais imaginara possível, e ali Adão sentiu medo. Lilith acomodou-se sobre o falo de um Adão sem verbo e gozou lindamente. Em seu íntimo, Adão foi feliz pela primeira vez. O corpo negro de Lilith revelou ao mundo o verdadeiro sentido da palavra potência e logo a felicidade de Adão, fugaz como são todas as felicidades, deu lugar ao medo.

Adão tentou se mover para deitar sobre Lilith, mas não conseguiu. Pediu então a Lilith que se retirasse de cima dele e voltasse ao seu lugar – sob seu peso, sujeita à linearidade, sem ângulos, obliquidades e voltinhas ameaçadoras. Lilith negou-se com um sorriso no canto da boca. Adão tentou ordenar, em vão. Ameaçou. Implorou. Chorou enquanto Lilith inundava o mundo com seus fluxos criadores. Quando por fim Lilith decidiu desmontar de Adão, foi para comer um figo, porque a fome lhe chamara. Adão custou a levantar-se, porque lhe faltava a força nas pernas. Quando por fim pôs-se em pé, jurou para si mesmo que aquilo jamais se repetiria e para livrar-se da culpa e da vergonha de ter sido parte de um inteiro onde não cabia a ordem, foi queixar-se com Deus.

Foram necessários dois minutos de choramingo adâmico para um Deus inseguro dar o veredito. Lilith lambia contente a ponta dos dedos sentada em meio a arbustos de alecrim quando lhe chegou a ordem: submeta-se. O paraíso não é lugar para seus arroubos. Aqui você não apita. Obedeça.

A Lilith, lua negra, com seus pezinhos de coruja e olhos felinos, com suas curvas, seus pelos escuros, seus seios grandes, soltou um guincho de dor e raiva, gritou “Não” e saiu voando do paraíso – daquela que era a sua terra, sua fonte, de cujas areias, pedriscos, raízes e lodo seu corpo havia sido criado. Como é possível eu ser humilhada assim na minha casa?

Chorou. Odiou. Gritou e uivou sozinha no deserto. Sentiu-se injustiçada, roubada, traída, sequestrada, enganada. Quis arrancar suas asas. Quis morrer e quis matar. Mas não o fez. Abriu um caderno e ali rabiscou vários planos. Aprendeu a fazer do uivo um assovio. Ensinou-se a dançar, ainda que sentindo dor. Trepou com muitos espécimes sem nome – jamais imaginou que os bíblicos, mais tarde, criariam tantas palavras para nominá-los, no afã de conhecer e apreender suas almas transgressoras. Teve filhas e filhos, aos milhares, todos marcados por sua negação. Inventou coisas incríveis e, sobrevivente que era, deu muitas gargalhadas altas. Fez do deserto sua morada e jamais temeu a amplidão, o mar vermelho, o céu noturno. No silêncio, na noite, na areia fria, ela rabiscou muitos esquemas, divertiu-se com rastejantes, assobiou melodias que embeveciam os chacais, requebrou os quadris, ondulou a pélvis, fez contas, arrumou seus cachos de diversas maneiras, sussurrou segredos para suas filhas (muitas e muitas vezes, de modo que os eternizassem), misturou cheiros e sabores em cadinhos sobre fogueiras, coseu as meias e as mantas de todas as que viriam depois dela, de todas as bruxas.

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As bruxas souberam e sabem ser sozinhas e fazer o sabbat, o dia do não. Sabem parar, não-fazer, negar-se à obrigação e vivificar o ofício sagrado em festivais de paixão e compaixão, quando à luz do fogo copulam percepções em movimento, dissolvem-se identidades: ali, na interseção de futuros e passados, partícula e onda gargalham ao mesmo tempo na roda e giram, giram, giram, seus copos cheios, seus sexos em brasa prontos para derramarem-se em bênçãos sobre o mundo. Compaixão ameaça horrores. Para segurar essa gira foram feitos sapatos apertados, bons modos, masmorras, hospitais, escolas, redes de televisão, lingeries, photoshop, remédios de tarja preta, o iogurte light e gluten-free. Investimento pesado anti-compaixão, anti-bruxas.

Sabbat, esbat, tanta confusão na praia de Copacabana. Cansaço. Vou não.

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Diz-se que Lilith é assassina de crianças. Que lhes suga a energia vital nos primeiros dias de existência.  Fiz isso muitas vezes ao longo desse tempo que habito, e certamente o fiz muitíssimas vezes mais em outras trajetórias apagadas da memória, mas presentes em mim. Assassinei minhas crianças, muitas crias ainda no útero, quando eram apenas ideias. Algumas mereceram lápides: páginas de cadernos rabiscadas com anseios e volúpia, onde sobraram resquícios de concepções às quais neguei um destino, um caminho. Outras, paridas junto com o sol ascendente, ocuparam um espaço estreito em manhãs de terremoto, quando prometi mudar tudo e dar-lhes esperança, sopro. Antes das 10 horas já haviam perecido, e eu, fingindo sobriedade e nenhuma culpa, fechava os cadernos, os arquivos, calçava os sapatos e voltava para a rua. Matei muito. Meu computador é um cemitério, as caixas de papeis e cadernos antigos que tenho em baixo da cama são depositórios de holocausto de palavras e frases às quais, um dia, pensei dar à luz.

Observei a mim mesma criticamente, friamente, executando esses gestos assassinos e conheço meu impulso: agora mesmo, sinto ganas de estrangular este texto tão miúdo e indefeso que sequer mexe braços e pernas. Neste afã, antes de matar, agarro a mão de Lilith e peço – me permita esse percurso, me permita correr o risco do encontro com o limite, me permita trazer ecos dos guinchos que anunciam a tua e a minha dor para dentro da bitola das palavras. Parece ofensivo, eu sei. Mas hoje, para mim, é necessário. Aperto as mãos de Lilith. Uma, ossuda e ressecada, me arranha. Outra me afaga, sublime mão de avó. Permita-me esse percurso – eu peço. Com todos os riscos de mágoa e espanto que ele traz consigo, me permita tentar dizer de minha matéria essencial, prima matéria, mater ejus Luna. Permita-me essa jornada rumo à inexorável incompletude. Assim eu sigo, negociando com o anseio de morte.

Lilith é anterior ao verbo e tudo que eu possa fazer para traduzir em linha aquilo que pulsa no meu umbigo – golfada de leite, sangue e grito – é pouco. Sobram crianças pegajosas, rosadas e sempre insuficientes – merecem morrer. Vamos ver por quanto tempo consigo velar seu sono.

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Chegou em casa, amanhecia. Um dedo negro, longo e em riste a acompanhara da rua à casa, assim como a acompanharia mais tarde, da casa à rua – e ela sabia que seria assim. Um chinelo arrastado e invisível fazia a trilha incidental para o dedo. Por cima do ombro, de relance, ela intuía a velha persistente. Era a mesma bruxa de sempre, sussurrando: uma hora isso acaba. Olhou pela janela, meteu pra dentro um ar fresco de arrebol. O prazer se sobrepôs ao medo. Fez uma transposição mágica.

As transposições mágicas que as mulheres fazem em diferentes momentos ao longo da vida merecem um olhar amoroso. Geralmente elas são feitas por mulheres abarrotadas, mesmo em seus vazios. Um olhar de esgueira para o nosso eu futuro – olhar abarrotado de potência: deu-se uma transposição mágica. Uma porta ruidosa, batida com força sem nenhum olhar pra trás, força abarrotada de convicções. Transposição mágica. Corrida na estrada esburacada, olho na faixa de chegada – onde começa a maratona -, pernas e estômago abarrotados de dúvidas sobre merecimento, mantidas secretas. Transposição mágica. Um abandono ao gozo, entranhas abarrotadas de eternidade, sentindo florescer hibiscos e camélias do umbigo à glote. Transposição mágica. Uma cria nos braços, nas mãos, um amor para o qual o mundo inteiro não basta – um segundo abarrotado de solidão –, transposição mágica. A mãe, a avó, a tia, a amiga que vai, junto com aquele olhar, o único que sabe de que somos feitas de fato. Fecha-se o caixão, acende-se a pira, dois corpos queimam: o morto e o vivo. Na saída do rito, resta o dia – comprar feijão, banana, ovos, pagar uma conta na casa lotérica e depois ir trabalhar, medula abarrotada de saudades. Transposição mágica.

Na coleção dessas transposições muitas mulheres se descobrem bruxas. Algumas se sabem bruxas antes de tudo, e fazem das transposições mágicas seu tecido, sua tensegridade, sua coreografia de movimentos de libertação. Há outras mulheres que transpõem sempre, transpõem tanto, com graça e com dor, mas não sabem de seu atravessar – nos seus instantes mágicos se deixam distrair pelos recados do mundo e escolhem estar ausentes quando borboleteiam ao seu redor os mais ricos significados.

Há um tempo para tudo. Há tempo para tudo.

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Desde sempre o sacrifício de bruxas é um espetáculo.

Os sacrifícios contemporâneos têm vinhetas e apresentadores, patrocínio da Eli Lilly, Pfizzer, Victoria’s Secret e uma marca de colágeno em pó com vitamina C cujo nome não lembro agora. Ao redor da praça de sacrifícios desfilam modelos sílfides de cabelos longos distribuindo free trial packs com aparência cândida. Memes de gatinhos oferecem outro tipo de alívio entre as doses.

O inquisidor pergunta, divertido: No que você está pensando? Não ouse não oferecer resposta. Você existirá, ele assegura. Responda e o polegar dará o veredito – quanto clique silencioso em angústia. A fogueira arde, o cadafalso range, o carrasco manda um smiley, é difícil identificar a origem da dor do martírio por ela ser tão difusa, de efeitos administráveis. A dor punge em momento eterno, não há depois. Tudo se desmilinguindo na luz fria que frita miolos, miúdos e mucosas. O churrasco é fenomenal.

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Salimon era conhecida como uma bruxa traiçoeira e tenebrosa. Morava numa gruta por onde todos tinham que passar se quisessem subir e descer a montanha. Salimon controlava os fluxos e apavorava os homens, hora com suas pernas peludas e patas fendidas (assim diziam), hora com sua cabeleira descontrolada, passos silenciosos e língua maliciosa. Na gruta da montanha, saltitando entre pedregulhos e cantando hinos cátaros com deboche, Salimon tocava o terror no sul da França.

Salimon pervertia moças. Ensinava-as a não contar o tempo; a afastar os ombros das orelhas em movimentos lânguidos; a mover-se com ritmo e prazer; ensinava-as sobre a força de seus maxilares, de suas tripas, sobre a agilidade de seus dedos. Salimon mostrava às moças inocentes como rodopiar e mover os braços em direção ao longe e como cantar alto com a boca fechada. Depois disso nada voltava à ordem, era um inferno – vinham homens e mulheres direitas de todo lado, com paus e palavras de ódio e desprezo, com cruzes e livros para atormentar Salimon, que não achava a menor graça em visitas de cerimônia.

Salimon nunca pereceu. Salimon perdeu lugar na boca do povo, o que para ela foi um grande alívio. Salimon não está no Facebook. Salimon tem um caderninho encardido cheio de pedaços de histórias colados aleatoriamente. Salimon tem um saco de gravetos, pedras e farelos de ervas secas que carrega consigo o tempo todo. Salimon quase não fala, mas move-se com lepidez. Salimon anda descalça e às vezes partes de seu corpo sangram. Salimon faz bonecas de pano e dá de presente a meninas perdidas. Salimon nunca teve pai. Salimon nutre amizades antigas com salamandras e cotovias. Salimon só cozinha quando lhe dá na telha. Salimon ri de seus cabelos brancos, de suas unhas sujas de terra, de seus joelhos ralados pelo tempo. Salimon sai da montanha com frequência – e visita mulheres inconformadas nos desertos do ser cindido, para um chá.

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que não me venham falar em lua cheia. Não me atraem as facilidades. Minha criação se dá a partir do nigérrimo, do lugar onde tudo cabe porque nada se vê. Um ser partido em dois, uma fenda, um hiato – isso dói, costas com costas sentindo saudades dos rostos familiares, vão me dizer que isso aparece na festa da lua cheia? Gêmeos separados pela espada, um imolado e o outro exilado no deserto, é disso que se trata o vazio contemporâneo. Não há festa ao bode na lua cheia. Cuidado. É difícil ser bruxa no deserto sem lua, mas é lá que tudo faz sentido. Na lua cheia se dá a paixão, mas é na lua escura que se dá a compaixão com a exilada, com o outro expiatório e expiado, com o corpo imolado.

Noite sem lua. Ali, na dor da areia noturna levantada pelo vento frio, açoite do deserto contra as peles marcadas, na secura infernal, no desconhecido de si em si, a bruxa deita seus líquidos e aviva suas brasas, testa com a língua a acidez de sua pedra hume e sente, sente fundo, sem refletir imagem nenhuma, incandescente. Escura, inteira, velha e nova. Lua negra.

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Edição 4