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Freedas Crew: mulheres livres para pintar

Faço parte de um grupo de mulheres grafiteiras e o relato a seguir diz respeito a essa experiência.  O tema da minha pesquisa de mestrado em Antropologia, na Universidade Federal do Pará, me deu a bela oportunidade de me aproximar do fazer graffiti e do universo em que ele se insere, além de conviver, a partir de então, com algumas mulheres grafiteiras em Belém. 

Conheci a artista plástica e grafiteira Michelle Cunha em uma exposição na casa-ateliê da artista, logo após a indicação de um amigo, quando esse soube do meu interesse em pesquisar o movimento do graffiti paraense entre mulheres. Naquele dia houve uma programação voltada para a temática feminista com exibição de documentários e um bate-papo com um grupo de meninas ativistas. 

Alguns dias depois, Michelle divulgou uma oficina de graffiti para mulheres pelas redes sociais. Era uma oportunidade e tanto, já que eu tinha uma proposta também de experimentação do graffiti, mas não sabia como faria isso até aquele momento. Meninas de diversas idades, bairros, expectativas e histórias se apresentaram. Muitas se inscreveram, algumas não participaram, outras não foram até o fim, mas as que permaneceram formaram então as Freedas Crew. E o que seria uma Crew afinal? É um grupo de grafiteirxs que saem para grafitar juntxs, que assinam um nome em comum, que planejam muros juntxs; muitos acreditam que uma crew é uma espécie de família. 

Foto: Michelle Cunha

Tanto a oficina quanto a formação do grupo foram idealizadas por Michelle que via naquela ideia um incentivo para que mais mulheres se aventurassem na arte de rua e pudessem buscar o empoderamento, ocupando espaços públicos reconhecidos como espaços majoritariamente masculinos. O impulso surgiu quando percebeu que a masculinidade dos eventos e da cena do graffiti fazia com que muitas mulheres talentosas ficassem à margem. Era preciso movimentar a cena e fazer com que mais mulheres participassem desse espaço.

Freedas Crew também foi um nome pensado para simbolizar resistência, superação e a liberdade de mulheres artistas. O nome da crew é um anglicismo, com a junção da palavra free com o primeiro nome de Frida Kahlo, nossa principal inspiração. As Freedas são mulheres livres para pintar.

Falar de graffiti não exige obrigatoriamente que a pessoa suje suas mãos de spray, porém devo confessar que acompanhar as meninas nesse aprendizado e me tornar integrante de uma crew, não só me trouxe uma vivência que eu não teria simplesmente com a observação, como também me proporcionou sensações e ensinamentos de uma arte que está intrinsicamente ligada ao “saber fazer”. São elementos que transcendem a observação do fazer artístico e o seu estudo em textos acadêmicos. Uma crew, além de uma reunião de pessoas em sintonia, possibilita a construção de afetos. No caso das Freedas, esses afetos são fortalecidos por serem mulheres que passam juntas pelos perigos inerentes à rua, por estarem expostas à intervenções policiais, e às variadas formas de machismo que acompanham muitos dos passantes. O graffiti é arte que vê na rua a chance de existir e levar com ele todo o sentimento e a criatividade de quem faz. Tornar a rua uma galeria democrática de arte e de formas de comunicação inusitadas. 

Quando relembro o primeiro mutirão (é a junção de várias crews ou grafiteirxs independentes para a criação de um graffiti coletivo) percebo que só naquele momento é que ficou clara a necessidade da criação de um grupo. Não que isso já não fosse previsto, mas o pintar junto, a parceria no processo criativo do graffiti, a mobilização de cada menina para a efetivação do muro foi determinante para a concretização das Freedas. 

 O muro foi negociado pela Walquíria, professora de Arte na Escola pública Antônio Gomes Moreira Junior. Ocorreu em parceria com o colégio que viabilizou tintas PVA (é uma tinta a base d’água usada para diversa superfícies e são muito utilizadas para fazer a base dos graffitis) para a preparação do muro, que seria a parte frontal do colégio, a qual foi realizada pelos alunos do colégio no dia anterior. Os alunos juntamente com a professora passaram a PVA no muro utilizando diversas cores, divididas em blocos de parede. Isso faz parte do preparo prévio do muro. 

O mutirão foi organizado pela Walquíria e mobilizado por Michelle através das redes sociais. Michelle preparou um flyer do evento convocando grafiteiros para participarem. Walquíria mobilizou alguns professores para oferecer uma feijoada no final da atividade. 

Ao chegarmos, ficamos sem saber por onde começar, pois seria a primeira vez em que praticaríamos o graffiti em um mutirão com grafiteiros experientes na arte de rua, tínhamos acabado de conhecer técnicas básicas, mas precisávamos passar por este ritual, pois é na rua que o graffiti torna-se graffiti. 

Foi realizado um encontro dias antes do mutirão, para definirmos o que faríamos no muro do colégio. Então, pensamos em uma temática representativa do feminino, ou melhor, ficaríamos focadas em rostos de mulheres. Com um esboço do desenho em mãos, iniciamos o graffiti. Utilizamos giz de cera para fazer o rascunho na parede, de tempo em tempo, conferíamos a ilustração de uma certa distância, para assim, visualizarmos as possíveis imperfeições, torturas e falta de simetrias no desenho. Após o rascunho, utilizamos a PVA para a base dos rostos. Só assim percebemos o quanto se agigantavam suas dimensões. E o muro a cada traço se mostrava desafiador. As Freedas nasceram depois de alguns dias.

Foto: Thayanne Freitas

Nesses nove meses de existência conquistamos espaços, parcerias e muros em branco. Deixamos a cidade um pouco mais colorida com nossos traços que dizem muito e demonstram a pluralidade que é a crew. Somos mulheres diferentes, com sonhos variados e perspectivas e ideais múltiplos. Aprendi com as meninas que não é necessário homogeneizar o grupo para que ele funcione: a crew reflete a diversidade político-estética de todas. Unimo-nos pelo desejo de pintar e de ressignificar o espaço da rua, muitas vezes tão cruel para todas nós.

E questões passam a surgir: Por que mulheres pintando nas ruas? De short curto? Sem técnica definida? E esses personagens “fofinhos”? Estamos nas ruas para responder a essas questões. Porque lugar de mulher é onde ela quiser! (frase muito usada por uma de nossas integrantes – Ester) E acrescento: como ela quiser.

Mutirões, rolês e parcerias foram feitas. Mas isso fica para outra história.

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Edição 2