Dossiê: Magia e reprodução

Aprender a ser atingida – O que dizem as mulheres atingidas pelo rompimento da barragem que matou o Rio Doce?

Ao longo do texto, acesse o link soundcloud da DR para escutar as vozes das atingidas: Marcia Maria Lima de Almeida, Silvia Lafaiete,  Rosária Ferreira e Domingas Santos

Vitória, Espírito Santo, 07 de novembro de 2017

“Eu sou pescadora, e meu formulário veio como lavadeira” (Silvia, Atingida de São Miguel)

“Eu não considero isso uma conquista. A gente não conquista coisa emergencial não. Conquista a gente vai ter depois do assentamento.” (Rosária, Atingida de Paracatu de baixo).

Dois anos de lama e luta. “Somos Todas Atingidas”?  

Esse ensaio é um eco das mulheres atingidas pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco (Vale-BHP), em Fundão/MG. Entre os dias 6, 7 e 8 de novembro de 2017, ocorreu na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), o Seminário de Balanço de 2 anos do Rompimento da Barragem de Fundão. O seminário reuniu atingidas e atingidos pelos cerca de 60 milhões de m3 de rejeito da mineradora Samarco S.A, uma joint-venture entre as corporações brasileira Vale S.A e a anglo-australiana BHP Billiton. Já se passaram 2 anos do maior crime-desastre envolvendo barragens do mundo. Logo, são dois anos de transformações violentas na vida das comunidades da Bacia do Rio Doce. Desde Minas Gerais até a foz do Rio Doce, na pequena vila de Regência, o rastro de rejeitos da mineração contendo metais pesados marca o rio com uma cor vermelha. A água, a terra e todo ecossistema contaminados. São 40 cidades e 19 mortos na história que se prolonga na luta das atingidas e atingidos. As amostras do solo e do leito do Rio Doce mostram alta incidência de ferro, chumbo, mercúrio, vanádio, arsênio e cromo. Com elevados níveis desses metais, as consequências possíveis são a redução da oxigenação da hemoglobina, ou até o aumento do risco e incidência de câncer em casos de exposição crônica, bem como efeitos ao meio ambiente.

No encontro vibrava um certo estado de ânimo. Algo distinto desses eventos que frequentemente acontecem na universidade. Outros povoamentos naquele espaço: nesse seminário, as atingidas ecoaram a voz das mulheres que vivem na carne a dor de ser atingida e atingido. A luta cotidiana desse movimento faz vibrar um corpo,  ultrapassa as indenizações – um processo de árdua negociação acompanhada pelo MAB (Movimento das Atingidas por Barragem) e outros parceiros, entidades e movimentos – e no caso das reparações, são as mulheres a expressão da luta pela terra e em defesa da água. A extensa bacia do Rio Doce é composta por regiões que em sua maioria vive da pesca e da agricultura. Rosária Ferreira, de Paracatu de Baixo, hoje moradora de Mariana em Minas Gerais, fala sobre as sementes de milho e  feijão que plantava no seu quintal. Eram sementes de uma linhagem conservada em sua família, patrimônio intelectual. Fonte de saberes e subsistência, uma outra economia afetiva com a terra. Nem capitalismo, nem socialismo, talvez algo como o “comunismo superior” que nos lembra Estamira.

“Lá em Paracatu, a terra era boa demais. Na verdade, eu acho que a terra é de acordo com quem trabalha com ela. Ela é parecida com a gente. Se plantamos e cuidamos com amor, o fruto nasce, mas, se tratamos de qualquer jeito, não dá. Eu sempre gostei de plantar sementes de milho e feijão de espécies diferentes daquelas que encontramos no mercado. Tenho espécies variadas de milho e feijão, como o milho crioulo, milho amarelinho, milho de palha roxa, feijão roxinho, feijão miúdo, feijão preto, feijão fumaça e feijão rapé. Consegui esses tipos variados procurando em outras regiões. Uma das sementes eu trouxe lá de Santa Catarina. Gostava de cultivar essas espécies por causa do sabor. É bom comer algo diferente. Além dos feijões e dos pés de milho, na roça, tinha cana, batata doce, abóbora, banana e melancia. Não era somente eu, quase todo mundo lá plantava de tudo. Conheço gente que só comprava o sal. Hoje, eu ainda replanto as sementes de milho e feijão. Faço isso para preservar as espécies até poder voltar a plantar novamente.”

Rosária Ferreira Duarte Frade, atingida de Paracatu de Baixo para a edição de novembro do Jornal A Sirene.

A lembrança e o trauma, a rouquidão, a voz que falha e grita, a nova marca nos olhos, algo ainda que não se reconhece. No rosto, mulheres com uma inscrição de batalha, aliás, de batalhas. Pensei na Simone Weil, “Sobreviver é a única atadura.” Quando algo te toma a própria vida, um acontecimento tão arrebatador, capaz de tornar habitar esse mundo insuportável. Mulheres atravessadas por um modo de vida relacional: a terra, o rio e todo o ecossistema. Pescar ou plantar, tradições, o modo de fazer, de estar, se comunicar. A nova vida agora é feita de mesa de negociações, entraves burocráticos, jargões do judiciário, assessorias e consultorias técnicas, homens de terno e apresentações em power point feitas para confundir. Ser atingida por tal acontecimento é suscetível de aprendizado? Apenas testemunha nesses últimos dois anos, trato de ouvir. São mulheres violentadas porque a empresa que realiza o cadastro de atingidas não insere a profissão de pescadora. São mulheres violentadas quando não conseguem alimentar mais filhos e netos. São mulheres violentadas porque tiveram suas sementes destruídas pela lama que veio. O homem branco ocidental não soube lidar com os limites. O limite da exploração. O limite da barragem. Para o homem branco ocidental, qual o limite?

Rosária Ferreira Duarte Frade, atingida de Paracatu de baixo, Minas Gerais

Ser mulher atingida é péssimo. Na realidade, quem toma conta da casa e quem cuida dos afazeres do lar são as mulheres. E quando você vê que tudo que você construiu com suas próprias mãos, está tudo devastado, é a maior tristeza que a gente tem. A coisa mais triste do mundo é perder tudo. Na roça a gente tem uma espécie de solidariedade, uma união entre as pessoas. Hoje isso não é mais possível, porque está cada um num canto e a gente quase nem se encontra mais. As mulheres que moravam na roça, algumas continuam procurando o que fazer em outros locais na roça e outras ficam confinadas dentro de casa, porque não tem mesmo o que fazer. A vida fica muito difícil, tudo isso causa depressão e doenças nas pessoas.

As mulheres conversavam sobre responsabilidade. Esse tratado não foi assinado por essas mulheres, suas vidas marcadas pela desigualdade e pela impunidade dos responsáveis. Sem limites. Elas sabem que são as maiores ambientalistas. Cuidar da terra, elas sim sabem. Os homens também escutavam, os companheiros de luta. Viver essa outra vida agora, vida de militante, a luta dos últimos dois anos transformou as relações de gênero. Mulheres e homens são todas atingidas. Vê-se a tentativa de elaborar uma frente para bater com o capital domador-colonial-racista-machista. As mulheres coletivamente são a força-movente, em seus corpos circulam a mensagem para as empresas: nós vamos estar aqui e nós vamos lutar pelo que somos. “Sou mulher e sou pescadora.”

Desejo e água.

Corpos-denúncia. No  texto “Tempestade no lixão”, Mariana Patrício pergunta: “Como escapar às metáforas e enfiar os pés na lama?” Se adensar em um mundo onde a experiência do precário seja a potência da invenção de uma vida; da sobrevivência. Essas vozes invadiram a universidade diante do discurso das ciências acadêmicas para dizer como se sobrevive nesse regime autoritário e racional do progresso econômico. A brutalidade com que a máquina machista-colonial-racista invade as relações de subsistência para criar outros códigos, sejam esses econômicos, sociais e culturais. Com as mulheres da beira do Rio Doce, mais do que escuta-las, nos inscrever nessa narrativa de reviravoltas.  Estão desmontando essa máquina que tudo engole pelo progresso e razões do tribunal do homem. São dois anos de lama e luta; para um outro funcionamento, uma economia afetiva atravessada por uma posição relacional da mulher que diz “somos todas atingidas”. Mulheres em estado de ânimo permanente, na escuta do que o desejo está sussurrando. Uma indigestão causada pela violência contra nossa identidade. Penso a identidade aqui como a mínima diferença. Mulheres do campo e da cidade se encontram numa conjugação de feminismos. A empresa e os advogados tentam neutralizar as forças, mas nesse encontro vê-se que a partilha sensível dessa experiência faz desse corpo uma fortaleza. Uma faísca que arde em nossos corpos individuais e quando juntas pisamos mais forte. Escutei das mulheres atingidas: tivemos nossas identidades roubadas. Refugiadas em seus próprios corpos. Um entre lugar: um estado de ânimo de quem vive em guerra. Nós mulheres estamos em guerra: mulheres na emergência desse limite.  

Marcia Maria Lima de Almeida, Colatina/Espírito Santo, MAB (Movimento dos Atingidos por Barragem)

Especialmente em Colatina, ser atingida é lutar para que a justiça aconteça para os atingidos. Especificamente na questão de gênero, a mulher, a gente percebe que a mulher atingida, não só pelo impacto de rejeitos da barragem, mas também na retirada dos direitos sociais conquistados a duras lutas no processo histórico desse país. Percebo que a mulher em si é a pessoa que mais sofre no processo, primeiro porque ela não é reconhecida e esse eco não é escutado. E no dia a dia no jeito, ela tem essa coisa de proteger os filhos e ela acaba sublimando isso de uma forma muito sofredora, porque ela diminui o impacto.  Então, ela diminui o impacto para os filhos não sofrerem mais. Isso e o impacto socioeconômico, esse país está essa revelia toda. Tem a questão do impacto, enquanto mulher, o direito de expressão que é um direito violado. Ela não quer ser representada, ela quer voz. A mulher quer ser ouvida a partir da fala dela. E o crime da Samarco está nesse contexto, porque as mulheres do litoral do Espírito Santo são mulheres sofridas, ela se constitui e ela fala que ela é pescadora. Ela nasceu no meio do rio, pai e mãe, agora, marido e filho. Ela é pescadora e se coloca como pescadora. E tudo isso foi tirado, porque ela tem uma cultura própria de sair para o campo e para a água com os filhos, isso foi tirado dela. Como essa mulher, quando falamos de cultura, vai passar isso para os filhos? Porque é isso que agente faz na história, a gente repassa aquilo que aprendeu com nossos pais e vamos também aprendendo outras coisas, mas a gente repassa essa cultura e isso foi tirado das mulheres. Não estou falando só de mim, isso é o que tenho escutado da mulherada.  Então, isso é muito sofredor e não entra nos autos. O impacto do crime da Samarco é socioeconômico, socioambiental, mas a violência é também cultural. Houve uma violação na cultura das pescadoras. Isso está na linha da subjetividade e não podemos esquecer, quando a gente ouve essa mulher, ela fala e ela chora. Penso que quando a gente fala da questão maternidade, a Mãe terra ela está sofrendo e a mulherada é extensão de Geia. Essa terra que grita as dores do parto, a mulherada está passando por esse momento. As dores do parto, é a extensão da dor da mãe terra. Nós temos que dar voz a isso, o nosso verbo tem que sair, essa voz, esse grito, esse eco. Esse parto tem que ser transformando, editado como um porta-voz. Acredito muito no poder da mídia, essa mídia consciente, não a que manipula, mas que tenha esse compromisso com a ética do jornalismo. E que principalmente coloque a subjetividade, coloque essas questões. A gente não pari só um dia, os nossos partos são contínuos. A cada postura que a mulher tem, a cada não que ela diz ao sistema é uma forma de parto. Nascer já é um desafio, mas todos os dias são partos. Essa figura que ficava endeusada, a partir da projeção romântica, isso não! A mulherada quer, o verbo é presente.

Silvia Lafaiete, São Mateus/ES

Água é vida, nosso rio, nossos idosos, nossas crianças, os pais de família, a nossa identidade como mulheres. Como a Samarco chegou lá? Plantou o veneno dela lá. Isso foi veneno e está matando a gente. Vocês olham eu assim, mas eu sou pescadora, eu sou mulher. No meu formulário está como lavadeira.  Estão querendo tirar nossa dignidade de marisqueira, querendo tirar a dignidade da mulher lutadora, pescadora, da atingida que sou eu. Nós todos somos atingidos, é isso que tenho que falar para vocês, porque antes de eu entrar nessa guerra, nessa briga, eu liguei no 0800, eu fui maltratada, os idosos foram maltratados, ignoraram a gente, mas eu estou aqui na luta por todos nós. Todos nós fomos atingidos, o rio, a natureza, aonde moro vi o caso também da Petrobrás, dos eucaliptos. Trouxe mel de abelha, é disso que nós vivemos lá. É isso que tenho para passar para vocês, eu sou simplesmente mais uma das atingidas. Eu sou pescadora, então estou lutando nessa guerra aí e eu quero a minha identidade como pescadora. Eu quero a minha identidade como mulher. Eu quero a minha identidade e isso foi um crime e continua sendo crime. Eu vivi pouco e morro muito, sofro muito e continuo sofrendo. Todos nós estamos sofrendo naquela região e tem gente ainda comendo peixe, siri, marisco, caranguejo, por que? Porque é a renda de comer, entendeu? Então, o que tá acontecendo, a gente não tem da onde tirar, a gente tem que comer.

Para mim ser uma mulher atingida, ela tem que ter o pulso firme, pé no chão. Hoje em dia, têm muitas coisas, o machismo, o machismo do homem, tem que ser submissa ao homem. Então, hoje nós temos a liberdade, nós temos uma identidade, como mulher. A mulher, ela é muito sofrida, ela é agredida, em todos os sentidos, na palavra, no agir, a dona de casa, os filhos, no lazer. Hoje nós somos muito massacradas pelo homem. Então, eu como mulher, eu quero ter a minha identidade, como mulher com respeito e dignidade, o meu interior de mulher, porque a mulher ela é frágil, ela precisa de carinho, ela não precisa do homem ser autoritário com ela. É assim que me sinto, por isso hoje tem muita violência. E eu fui vitima dessa violência no passado, entendeu? O homem. Eu fui espancada, tenho o maxilar danificado. Hoje, é por isso que eu quero a minha identidade, porque a mulher não foi feita para bater, a mulher foi feita para ter carinho, respeito, ter amor, como Mãe, como pescadora. E essa lama veio e destruiu as nossas vidas, as nossas rendas, porque hoje é só briga, é quem vai ficar com o dinheiro, acabaram com as nossas vidas como mulher. Ela (a empresa) chega querendo tirar nossa identidade de pescadora para ter a sua renda. Eu me sinto desse jeito.

Domingas Santos, São Miguel/Espírito Santo

Eu sou catadora de ostra, vendo ostra na praia e a minha fonte de renda era ostra. Tinha fonte de renda de 2 mil reais, hoje a minha fonte de renda é 50 reais. Eu tenho filhos, e é triste pra mim como mãe, como mulher, como avó, eu fico triste, do meu neto pedir um biscoito e não puder dar, porque não tenho fonte de renda na minha casa. Eu queria ver com os olhos se tinha alguém brigando por nós, porque eu não tenho uma casa para morar. Quem quiser ir na minha casa eu dou o convite, dou o endereço, tive carro, tive moto, carro novo pra andar com meus netos, hoje não tenho mais, porque minha fonte de renda é 50 reais para gastar com comida. A gente está esquecido, nós fomos atingidas, eu acordava às 5 horas da manhã com meu esposo para ir para o mangue, um saco de ostra por dia, eram 2 mil reais, hoje não vende mais. Os meus clientes, ninguém quer comprar mais, as ostras estão estragadas. Nós abrimos elas e estão todas pretas por dentro. O meu esposo sai para trabalhar e fico em casa chorando, porque não tem emprego. Se tivesse emprego, mas não tem. Eu sou mulher para enfrentar a dureza. Estou aqui para pedir socorro para vocês. O que é ser um mulher atingida? Para mim se sentir uma mulher atingida são os nossos prejuízos, nos sentimos esquecidas. Hoje não tenho mais fonte de renda, mesmo com esse cartão que eles estão dando, não vai me trazer de volta o prejuízo que foi causado lá atrás. Então, eu como mulher a gente luta, você vê as minhas mãos com calo e toda cortada, é o trabalho de mangue. Nós não recuperamos o que a gente perdeu. A gente que é mulher, a gente tem que se valorizar, correr atrás do nosso prejuízo, erguer a cabeça. Muitas baixam a cabeça e se esquecem.

Imagens: Thaís Henriques Dias-Organon|UFES e equipe Rio das Lágrimas Secas.

Agradeço ao Organon/UFES (Núcleo de Estudo, Pesquisa e Extensão em Mobilizações Sociais) por promover um espaço potente de construção dos debates para as atingidas e atingidos, especialmente pela transmissão do seminário, de onde ecoam as vozes das mulheres atingidas também transcritas aqui nesse ensaio; e a Thaís Henriques Dias por ceder as fotos. Para atualizações sobre as ações civis pública (ACPs) ainda em curso, acesse: http://organon.ufes.br/
Agradeço ao Jornal Sirene, por ceder o depoimento da Rosária Ferreira Duarte Frade, em reportagem especial o “Solo perdido”. Jornal produzido pelos atingidos do rompimento da Barragem do Fundão (Samarco) em novembro de 2015. Acesse: https://issuu.com/jornalasirene
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Edição 4